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  • Ao final, não esperem uma verdade absoluta, pois terei que infelizmente lhes informar que não há. - Amanda Lemos -

domingo, 27 de maio de 2012

Prateleira Literária: Segunda Edição - I


Doeu como um soco e ardeu como fogo III

Um dia completamente cinza e adorável descoloria toda a cidade e para meu contentamento, um frio cortante e uma chuva teimosa e gelada enquanto caminhávamos abraçados compartilhando o guarda-chuva florido e rosa de Julia - não fosse aquele guarda-chuva florido e rosa, teríamos uma puta fotografia de inverno.

Decidimos parar num desses restaurantes amadeirados por fora e por dentro, de mesas pequenas e curvas com cadeiras desconfortáveis. Sempre achei que as cadeiras desconfortáveis serviriam para manter uma certa rotatividade de clientes lá dentro. Não era possível ficar sentado por mais de duas horas sem sentir uma pressão monstruosa nas costas... Ambiente bem bacana, poucas pessoas e quente. Gostei daquele lugar. Também, depois de dirigir por 8 horas sem parar, até um boteco cospe grosso nos seria confortável. E eu ainda era capaz de sentir a vibração daquele V8 pelo corpo todo. Mas estava um caco...

'Você está bem?!' Disse ela com toda ironia (impossível) descabida num sorriso depois de dormir durante toda a noite e acordar somente na hora em que desliguei aquele monstro de carro. Não sei como pôde dormir com todo aquele barulho.

- Estou tão bem quanto você.

- Não é o que responde seu rosto.

- Não julgue pela aparência. 'Imagem é nada', lembra desse comercial de TV? Ok? Ok. Respondi a mim mesmo enquanto aguardava meu café expresso nem tão expresso assim, mas que valeria cada minuto de espera. Vi que eles tinham dessas máquinas que transformam grãos de café 'tipo exportação' em um copo caudaloso e quente de café em minutos. 'Preciso de uma dessas em casa', disse enquanto o cheiro do café torrando tomava conta do lugar quase que por mágica.

'Você dormiria menos do que já dorme e ficaria enchendo o saco dos vizinhos com o som alto. Não, você não pode ter uma dessas em casa.' Ela tinha razão.

- Se lembra bem daquela nossa conversa de ontem, Sê?

- Claro. Respondi sem tirar meus olhos do copo caudaloso e quente de café, como quem fazia uma espécie de alquimia ao jogar dois sachês de açúcar sem piedade para dentro. Três.

- E o que você me diz agora? Acha que eu devo largar as coisas nos Estados Unidos e voltar p'rá cá?

Ela não permitiu que eu terminasse aquela 'alquimia do café melado e quente' antes de mandar essa. Eu já esperava, até.

- Julia. Independentemente do que eu penso, você não deveria basear suas decisões nas minhas opiniões. Além de não fazer qualquer sentido, minha opinião e nada são gêmeos siameses. Você falou por horas ontem sobre voltar para o Brasil e sobre seus novos planos - e me incluíra neles sem qualquer aviso prévio e menos ainda, consentimento.

Ela dedilha alguma coisa sobre a mesa com as unhas enquanto eu falo - ainda olhando pro café e não acreditando naquele momento mágico do primeiro gole - e parece irritada com o que ouve.

- Pode ser direto, porra? Parece candidato da direita. É tão difícil assim sair de cima do muro por pouco que seja?

- Ok, Julia. Me dê vinte minutos e mais um café desses que eu respondo o que você quiser. Qualquer coisa. Sobre qualquer assunto. Trinta minutos, pronto. É justo. Satisfeita?

Ela sorriu e olhou para a janela enorme do lugar. A chuva escorria pelo vidro escurecido e abstraía. Eu também.

É certo que chega aquela hora onde você, mesmo querendo fugir mais uma vez, sente a obrigação pessoal de encarar-se. Acontece sempre, mas quando se torna repetitivo você fica cansado de fugir e acredita que vale 'pagar para ver'. Mas não vale. É teimosia, aquela coisa humana, fraca, pouco inteligente e filha da puta. Meus últimos anos de vida trouxeram coisas ruins demais para que eu fosse capaz de acreditar em ofertas assim, como a Julia. Sim, uma oferta da vida, a mesma vida que eu tanto sacaneei e tentei destruir. Não poderia ser justa comigo, não agora, depois de tanta coisa ruim. Era fácil demais, estava fácil demais. Coisas assim não acontecem mais de uma vez na vida de um homem, talvez na vida de uma mulher. Talvez na vida de um cão. Não sei dizer. Sei mesmo é que eu estava ficando sem respostas como fiquei por raras vezes na minha vida inteira. Uma vida estranha, meio vilã, meio madrasta má. Para mim, 'essa coisa' já tinha acontecido - foi quando conheci a Julia. Foi algo tão avassalador quanto destrutivo. Para mim e para ela. Mais para ela. Duvidei todo o tempo de suas intenções comigo, como de praxe, e os anos passaram pelos olhos como aquele vento cortante lá fora. Quinze anos, para ser mais exato. E ela está aqui agora, tão linda quanto antes e com os mesmos planos... É justo que eu acredite, do fundo de toda minha autodefesa e descaso.

Julia era uma 'pessoa especial', em termos gerais. O tipo de gente que não se conhece em todas as encarnações. Nos conhecemos cedo demais, para mim e para ela. Seus pais nunca foram seus pais, sua família nunca foi família fora dos porta-retratos, e ela sempre foi sozinha. Dona de uma dor própria e do sorriso contido mais bonito, era presa fácil para saqueadores. Tínhamos bastantes loucuras em comum e arriscaria dizer que ela seria a minha versão feminina se você trocar meu amargo pelo seu doce.

'Bip, bip. Seu tempo acabou. Espero que tenha aproveitado seus cafés.' Disse ela debruçando-se sobre a mesa com os cotovelos, deixando à mostra seu decote.

'Isso não vai funcionar comigo, você já sabe.' Ela sorriu enquanto me pegava naquele flagrante voluntário. 'Mas podemos começar agora. Vá em frente.'

- O que acha dos meus planos?

- Fala dos planos em que fui cotado sem aviso prévio ou consentimento?!

- Não, seu chato. 'Do conjunto da obra', disse ela girando os braços no ar com esperanças.

- Perfeitos.

Um silêncio derradeiro se fez naquele lugar. Nem a máquina de café conseguia furtar aquele silêncio. Ela levantou-se devagar daquele debruço sensual enquanto seus olhos marejaram. Fitou-me por minutos sob aquele meu 'perfeito' meio desinteressado, como quem tende a sair correndo a qualquer momento. Mas eu não faria isso. Tomava meus últimos goles daquela coisa divina chamada injustamente de 'café expresso' e ela estava ali, estática. Eu não sabia o que dizer além daquilo, e nem precisaria: vindo de mim, era mais do que uma frase fechada por ponto final.

Ela quase deitou-se sobre a pequena e curva mesinha e pôs-se a soluçar brevemente. Algumas pessoas olhavam tentando entender porquê que uma moça tão bela chorava enquanto um rapaz com cara de mau tomava café sem qualquer espreita reação. Cinco minutos passados no grande e antigo relógio do lugar, ela levanta-se enxugando os olhos com as mangas da camisa branca e diz que vai ao banheiro. Um cara me olha na mesa à frente como quem tirasse satisfações ou tomasse as dores da moça tão bela. Fitei-o por uns dez segundos, interrompendo-o bruscamente com um balanço de cabeça e um olhar meio 'o que foi?' Ele não olhou mais.

Julia voltou uns dez minutos depois com a cara lavada. Estava no bar, ao rum. 'Quer um digestivo?', eu disse. 'Não. Estou bem assim. Melhor que nunca.' Disse ela com um sorriso que eu não via há mais de uma década. 'Vocês estão juntos?' Disse o barman. Fitei Julia por um segundo, que se apoiava em meus ombros. 'Você quem deve responder', ela deve ter pensado. 'Sim, estamos. Há quinze anos. E quem paga a conta é ela.' O barman sorriu, mas não acreditou. Levou de boa mesmo.

'Vamos?' Disse Julia, tirando meu segundo copo de rum.

'Sim, vamos.' Respondi abominando a condição de abandonar meu copo. Olhei para o barman, me despedi e saímos.

'Ela dirige hoje, certo?' Disse o barman em tom mais alto, e irônico.

'Agora, ela faz o que quiser. Ela quem pagou a conta.' 'Boa noite!' Disse ele, sorrindo.

'Vamos pro hotel. Preciso de um banho. Você vem?'

'Há quanto tempo espero por isso...'

Julia não continha-se em tanta euforia. Uma adrenalina a consumia ferozmente e ela parecia muito à vontade com isso. Seriam dias naquele lugar, ela estava de volta e queria mais. Na semana que vem, Julia volta para os Estados Unidos para finalizar uma vida praticamente feita por lá, mas disse que deixa o V8 comigo se eu prometer não sair para beber com ele. É uma fase estranha, agora. Mas estou confortável. ' É certo que chega aquela hora onde você, mesmo querendo fugir mais uma vez, sente a obrigação pessoal de encarar-se. Acontece sempre, mas quando se torna repetitivo você fica cansado de fugir e acredita que vale 'pagar para ver'. Mas não vale. É teimosia, aquela coisa humana, fraca, pouco inteligente e filha da puta.' Talvez valha a pena sim, ainda assim.



Texto de:
Lucas Poeta, de Itaguaí-RJ. 27 anos.

Blog:
 http://minhavidanaodarianumlivro.blogspot.com.br

5 comentários:

A VIDA É UM ETERNO APRENDIZADO disse...

Bom dia!
Gostei muito do seu blog,grata pela sua visita.Já sou sua seguidora.
Grande abraço
se cuida

Anônimo disse...

Olá meus queridos Irãos, Graça e Paz.

Parabéns pelo blog, muito edificante. Como sempre tenho dito:
que uma das formas para crescimento, tanto pessoal como espiritual
é a leitura, é aprender uns com os outros em troca de conhecimentos.
Aproveito a oportunidade para compartilhar o nosso blog, Mensagem
Edificante para Alma. Um blog cristão com informações, Notícias, Músicas,
Eventos em fim, tudo que move o mundo Gospel.
Ficarei feliz por vossa visita e mais ainda se nos seguir-nos.
Deus continue vos abençoando Ricamente
Josiel Dias
Mensagem Edificante para Alma
http://josiel-dias.blogspot.com.br

Unknown disse...

Parabéns pelo blog, está entre os meus favoritos...
Aproveito a oportunidade para compartilhar meu novo blog: http://prosapaulistana.blogspot.com.br/

Crisjoli Fingal disse...

Muito bom Amanda receber sua visita no meu blog. Grande abraço,

Crisjoli Fingal

Unknown disse...

Encontrei o link para seu blog no blog "Caleidoscópio" e estou adorando conhecer seu espaço. Adicionei à favoritos porque pretendo voltar.Comecei um blog há menos de 1 mês e te convido a me visitar, e quem sabe me seguir, não divulguei aos amigos e ainda não tenho seguidores, ms vc está convidada!
www.asomadetodosafetos.blogspot.com.br
Obrigada, até logo!

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Aqui não se conta tudo, porque o tudo é um oco, é um nada. Se conta somente, e o somente não necessita de explicação.

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